Pe João Bosco Penido Burnier Sj
João Bosco Burnier nasceu em Juiz de
Fora no dia onze de junho de 1917 e no dia sete de abril de 1928 deixou os pais
Henrique e Maria Cândida Penido Burnier e os sete irmãos para ser padre na
diocese do Rio de Janeiro. Quando estudava em Roma decidiu ser jesuíta. Entrou
na Companhia de Jesus em 1936, sendo ordenado sacerdote em Roma, no dia 27 de
julho de 1946. Em 1948, tornou-se secretário do Padre Geral da Companhia de
Jesus para a Assistência da América Latina. Depois da bomba de Irochima e
Nagazaki pediu para ser missionário no Japão. No entanto, foi enviado para ser
Superior da Residência de Anchieta, no Espírito Santo, e Provincial da Vice
Província Goiano-Mineira entre 1954 e 1958. Exerceu importantes serviços na
Educação: foi Mestre de Noviços e Diretor espiritual dos juniores entre 1959 e
1965.
Para evocar a figura de Burnier,
voltemos aos anos sessenta, com o início da ditadura militar no Brasil cuja
ideologia desenvolvimentista consistia em integrar para não entregar.
Os Xavante, habitantes tradicionais da região em questão, desde os anos 40
vinham sendo perseguidos e eram temidos porque reagiam à invasão do seu
território pelas frentes de expansão coloniais. As Companhias colonizadoras
recebiam as terras do Governo para vendê-las. Com as guerras e as doenças foram
sendo vencidos aos poucos, resolveram associar-se à Missão dos salesianos para
sobreviverem. Para atender às frentes colonizadoras foi aberta a estrada de
Barra do Garças para São Félix do Araguaia.
A produção de arroz deu muito lucro
para os produtores rurais, na época inicial da colonização da região. Para o
vale do Araguaia foram atraídos também muitos pobres sem emprego, pessoas que
tinham perdido seu pedaço de terra para grandes especuladores. Muitos sem-terra
passam a ocupar a região como posseiros.
O tempo de graça das mudanças na
maneira de trabalhar com os povos indígenas estava fervilhando quando Burnier
chegou à Missão jesuítica, com sede em Diamantino. O clima de igreja
perseguida na América Latina e as reuniões quentes que eram feitas entre os missionários,
o fizeram mudar seu modo de pensar a Missão. Teve que aprender a participar das
discussões como um igual e a reconhecer seus erros para deixar-se desafiar. Nas
reuniões tensas, ou situações sem solução imediata, dizia: “leve... na
esportiva!”
Um destacamento de polícia foi
estabelecido em Ribeirão Bonito, junto de Ribeirão Cascalheira, em 1973,
para pressionar, intimidar os agricultores pobres que entravam em choque com os
grandes fazendeiros na luta para adquirir um pedaço de terra. Os pequenos
produtores rurais dali escreveram ao presidente do Brasil, Ernesto Gaizel,
protestando que a polícia só estava a serviço dos fazendeiros, maltratava e
torturava os pequenos agricultores e os peões. À época, a Igreja de São Félix
do Araguaia tinha voz profética com Dom Pedro Casaldáliga, que alcançava grande
representatividade na defesa dos Direitos Humanos.
No início dos anos 70,
a Igreja criou o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) ligado à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para articular os trabalhos
com os indígenas.
Através da coordenação do regional do
CIMI-MT, João Bosco Burnier foi à Prelazia de São Félix participar de um
encontro de pastoral indigenista em Santa Terezinha. Visitou a
aldeia Tapirapé, plantou uma mangueira em S. Felix e voltou com Dom
Pedro Casaldáliga até Ribeirão Bonito (hoje Ribeirão Cascalheira) para
participar e celebrar a festa de Nossa Senhora Aparecida.
Porém, o tempo não estava para festa.
Um clima de terror pairava no local. Num confronto com a polícia militar os
“posseiros” haviam reagido à onda de terrorismo e mataram o cabo Felix,
conhecido na região por suas “arbitrariedades e até crimes”. Os policiais
atribuíam a Jovino Barbosa e seus filhos a morte do cabo Félix. Como os
suspeitos estavam foragidos, para localizá-los, os policiais carregaram para a
delegacia a mulher de Jovino chamada Margarida e sua nora Santana e as
torturavam barbaramente de várias maneiras com tapas, pitoco de cigarro e
agulhas. Vários policiais violaram Santana, queimaram sua roça, sua casa e todo
o arroz do depósito.
O Padre João rezou e cantou com o povo
na procissão de Nossa Senhora Aparecida para a bênção da água do batismo.
Ouvia-se da delegacia muitos gritos e súplicas: “Não me batam”.
Depois da procissão Dom Pedro e o Padre Burnier foram à delegacia interceder
por ambas: “impotentes e sob torturas – um dia sem comer e beber, de joelhos,
braços abertos, agulhas na garganta, abaixo das unhas – uma repressão desumana”
(Dom Pedro Casaldáliga). Pediram que soltassem as mulheres inocentes, mas os
soldados os insultaram e disseram que lugar de padre é na sacristia. Sem
resultados, o Padre Burnier disse que estava indo para Cuiabá e denunciaria os
abusos. Ao ouvir isso o policial Ezy Ramalho Feitosa se adiantou e deu-lhe uma
bofetada, um golpe com a coronha no rosto e o tiro fatal.
“Eu me apresentei como Bispo de São
Félix, dando a mão aos policiais. O Padre. João Bosco também se apresentou. E
tiveram aquele diálogo, de talvez três ou cinco minutos. Sereno, de nossa
parte; com insultos e ameaças, até de morte, da parte deles. Quando o Padre
João Bosco disse aos policiais que denunciaria aos superiores dos mesmos as
arbitrariedades que vinham praticando, o soldado Ezi Ramalho Feitosa pulou até
ele dando-lhe uma bofetada fortíssima no rosto. Inutilmente tentei cortar aí o
impossível diálogo: João Bosco, vamos... Em seguida descarregou também no rosto
do Padre um golpe de revólver e, num segundo gesto fulminante, o tiro fatal, no
crânio” (Dom Pedro Casaldáliga).
O Padre caiu mortalmente ferido, vítima
da caridade, sem reagir diante de tamanha violência. Dom Pedro lhe deu a Unção
dos Enfermos, enquanto o Padre Burnier rezava, invocando várias vezes o nome de
Jesus. Viu que sua hora havia chegado, ainda consciente, disse a Dom Pedro:
“ofereço a minha vida pelos índios e este povo sertanejo”. Recordou de Nossa
Senhora Aparecida e pronunciou suas últimas palavras: “Dom Pedro, terminamos a
nossa tarefa!”.
Não houve processo criminal contra o
assassino, não foi preso nem julgado, porque se tratava de uma vítima do
sistema de violência institucionalizada pela própria instituição militar na
ditadura de Estado, o que gerava a pretensão de domínio absoluto sobre as
pessoas e a subserviência da população. Todo o povo ficou com o coração pasmo.
Os homens do lugar tomaram coragem e foram ver o padre no ambulatório, mas as
mulheres ficaram rezando na igreja e em casa. Diziam: Se fosse um de
nós... não seria estranho, acontece todos os dias. Porém um padre! Estes
policiais perderam o sentido!
Sem recursos para atender o Padre
agonizante no local, Dom Pedro chamou por socorro e as lideranças da Igreja
local foram atrás de um táxi aéreo. Para Dom Pedro Casaldáliga, aquela foi uma
via-sacra de Redenção pelos caminhos da Amazônia, pelas terras dos índios, dos
trabalhadores rurais, dos empregados das fazendas. Chegaram em Goiânia, porém o
Padre Burnier se encontrava em agonia de morte.
No terceiro dia, a celebração foi iniciada com este comentário: “que o
sangue derramado pelo Padre João Bosco nos comprometa na caminhada”. Nosso
mártir nos deixou no dia 12 de outubro de 1976 para estar junto do Pai. Foi
enterrado como semente no dia 15, em Diamantino.
Dom Pedro observou: Deus pôs um sinal no céu: o arco-íris, sinal da
glória desta hora. No terceiro dia, na Missa em Ribeirão Bonito, foi feito
o comentário: que o sangue derramado
pelo Padre João Bosco Burnier nos comprometa no caminho.
“Uma lápide erigida pela comunidade Nossa Senhora Aparecida expressa a
fé do povo: Irmãos, aqui em nosso lugar, a paixão e morte de Cristo se fez
presente e se renovou no Padre João... Como também aconteceu com Jesus Cristo,
o Padre João morreu porque defendia a verdade, a justiça, a liberdade. Era um
espinho nos pés dos poderosos e opressores. Por isso usaram da força para
fazê-lo calar: o assassinaram. Porém a morte não é o fim. A morte é um passo
para a vida. E esta morte nos faz recordar...”
Ao sétimo dia, em romaria com velas
acesas, foi levada uma grande cruz ao lugar do assassinato e ali foi levantada,
com a participação de toda população. Uma placa de madeira, onde estava escrito
com ferro incandescente o acontecido: No dia 11 de outubro de 1976,
neste lugar de Ribeirão Bonito, MT, foi assassinado o Padre JOÃO BOSCO PENIDO
BURNIER, por defender a Liberdade do Povo.
Naquele dia, um dos participantes
afirmou: Essa prisão da delegacia só serviu para deter e humilhar os
pobres, peões e pequenos produtores rurais. Nunca se viu um rico nela.
Outro acrescentou: A cruz representa a nossa libertação; essa cadeia
representa a perseguição, a tortura, o assassinato e tudo o que nos aterroriza.
As pessoas estavam indignadas com o que
aconteceu e foram se juntando. Essa união levou à realização de um gesto
profético: Arrancaram as portas e grades da cadeia, para que ninguém
mais ficasse preso e judiado injustamente. O povo todo participou... Quem não
podia participar diretamente, batia palmas e davam gritos de encorajamento.
O povo resolveu abrir as portas da prisão... e colocaram abaixo a delegacia de
polícia. A enfermeira que atendeu o
Padre João testemunhou: Com o martírio do Padre Burnier para libertar
as duas mulheres presas, libertou o povo da prisão do medo. O povo que tinha
medo de sair de casa saiu às ruas e, numa ação coletiva, destruiu a cadeia.
Quiseram construir uma igreja no lugar da
prisão, porém a Polícia Federal ficou de plantão para amedrontar e impedir que
se construísse a igreja no lugar da prisão. Arrancaram a placa de madeira que
rememorava o acontecido junto à cruz. O povo colocou outra de ferro. Porém, a
polícia acabou por arrancar também a cruz. A memória do povo era demasiada
subversiva para um Estado autoritário em mãos dos militares. Infelizmente este
não foi um caso isolado com os militares no Governo do Brasil. A causa
verdadeira dessa violência tem raízes num sistema de falta de respeito à pessoa
humana. Ali surge a tortura e a opressão dos pobres: dos povos indígenas, dos
pequenos agricultores e trabalhadores do campo e da cidade e de quantos se
solidarizam com eles. Este martírio tem sido cimento na construção de um mundo
novo na justiça e na caridade.
João Bosco Burnier tinha uma disposição
interior de atender a todas as pessoas. Seu esforço de pesquisa em teologia e
filosofia na formação básica continuava agora nas áreas de história, linguística
e antropologia, isso para melhor responder à Missão com os povos indígenas. Era
um homem de princípios e não ficava em cima do muro, discernia e decidia com
firmeza. Burnier era um homem reservado nas experiências pessoais, mas humilde
e pobre. Tomava as conduções mais baratas, sabia esperar carona na estrada e
descansar ao relento. Às vezes engatava uma viagem na outra para dar conta dos
trabalhos e fazia parte da coordenação do Regional do CIMI Mato Grosso quando
foi martirizado.
Em 2001 o lema da Romaria dos Mártires
da Caminhada foi “Vidas pelo Reino”. Saponaghi queria entrar em comunhão com os
Bakairi, esforçou-se para aprender sua língua, os acompanhava na roça, nos
banhos de rios, nas celebrações e nas festas. Recordam com carinho deste
missionário, especialmente nas aldeias Pakuera e Sant’Ana, pois sua chegada era
motivo de alegria e esperança para todos.
Foto retirada do livro do Padre Maia a
respeito do Padre João Bosco Burnier, da Editora Loyola.
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