sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Os Mártires Jesuítas da UCA

Mártires em El Salvador: uma memória que continua forte 20 anos depois

Evento no IHU irá rememorar o brutal assassinato de seis jesuítas, a funcionária de sua residência e sua filha de 15 anos, com exibição de debate entre Jon Sobrino, Noam Chomsky e o jesuíta J. Donald Monan
Vinte anos não foram suficientes para apagar da memória o terrível assassinato de seis padres jesuítas, a funcionária de sua residência e sua filha de 15 anos, no dia 16 de novembro de 1989, no jardim da comunidade jesuíta da Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (UCA), em El Salvador.
Na madrugada daquela quinta-feira, Ignacio Ellacuría,  reitor da UCA; o vice-reitor, Ignacio Martín-Baró;  o diretor do Instituto de Direitos Humanos da UCA, Segundo Montes; o diretor da biblioteca de teologia, Juan Ramón Moreno; o professor de teologia Amando López; o fundador da universidade, Joaquín López y López, todos jesuítas; a funcionária Elba Ramos e sua filha Celina  foram fuzilados a sangue frio no campus da UCA.
Paramilitares do Exército salvadorenho invadiram a residência dos jesuítas deliberadamente para matar àqueles que incomodavam a ditadura, no rastro do assassinato de outro jesuíta, Pe. Rutilio Grande, amigo próximo de Dom Óscar Arnulfo Romero,  arcebispo da capital, San Salvador, que também foi fuzilado enquanto celebrava a missa.
Para reforçar essa lembrança e celebrar a importância desse martírio para o contexto latino-americano, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU irá exibir o debate "Memory and Its Strength: The Martyrs of El Salvador" [A memória e sua força: Os mártires de El Salvador], que irá ocorrer no Boston College, nos Estados Unidos, no dia 30 de novembro. Nesse encontro, o filósofo norte-americano Noam Chomsky e o jesuíta, teólogo e co-fundador da UCA, Jon Sobrino – que, no dia do massacre, estava fora de El Salvador –, irão debater sobre a importância dessa memória, mediados pelo jesuíta e reitor emérito do Boston College, J. Donald Monan.
A exibição no IHU, traduzida ao português, irá ocorrer no dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, em um evento que está sendo especialmente preparado para lembrar o aniversário do martírio dos jesuítas de El Salvador. Nessa data, como homenagem póstuma da Unisinos, a atual sala de eventos do IHU – 1G119 – será reinaugurada como Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros.
O debate do Boston College irá rememorar o significado do martírio dos jesuítas da UCA não apenas em palavras, mas também por meio do histórico, da trajetória e da relação de cada um dos convidados com os fatos ocorridos em El Salvador.
Nas palavras do próprio Jon Sobrino, em artigo publicado pelo sítio do IHU,  "o que me interessa recordar e reforçar é que, em El Salvador, existiu uma tradição magnífica: a entrega e o amor aos pobres, o enfrentamento aos opressores, a firmeza no conflito, a esperança e a utopia que passavam de mão em mão". Nessa tradição, segundo o teólogo, "resplandecia o Jesus do evangelho e o mistério de seu Deus". "Não podemos dilapidar essa herança e devemos fazer com que ela chegue aos jovens", afirma Sobrino.
Os debatedores
Jon Sobrino é padre jesuíta e morava na mesma residência dos seis jesuítas assassinados. Por coincidência ou providência, ele estava fora do país naquele 16 de novembro. Sobrino é um dos grandes teólogos da Teologia da Libertação, doutor em teologia pela Hochschule Sankt Georgen de Frankfurt, Alemanha, tendo recebido sua formação teológica no contexto do espírito do Concílio Vaticano II e da II Conferência Geral do Conselho Episcopal Latino-Americano, em Medellín, em 1968. É doutor honoris causa pela Universidade de Louvain, na Bélgica, e pela Universidade de Santa Clara, na Califórnia. Atualmente, divide seu tempo como professor de Teologia da Universidade Centro-Americana, responsável pelo Centro de Pastoral Dom Oscar Romero, diretor da Revista Latinoamericana de Teologia, além de ser membro do comitê editorial da Revista Internacional de Teologia Concilium. É autor de "Jesus Cristo libertador: Leitura histórica-teológica de Jesus de Nazaré" (Vozes, 1994) e "A fé em Jesus Cristo. Ensaio desde as vítimas" (Vozes, 2001).
Noam Chomsky é conhecido como um dos pais da linguística moderna. É professor emérito de linguística e filosofia do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos EUA. Paralelamente à pesquisa acadêmica, tornou-se ativista político de grande popularidade em todo o mundo por suas posições de esquerda e suas críticas à política externa dos EUA. É membro da Academia Americana de Artes e Ciências e da Academia Nacional de Ciência dos EUA. Publicou mais de 70 obras, entre elas: "Estados fracassados" (Bertrand Brasil, 2009), "11 de setembro" (Bertrand Brasil, 2003) e "Poder e terrorismo" (Record, 2005).
Já o moderador do debate, o padre jesuíta J. Donald Monan, era reitor do Boston College em 1989, o ano do martírio, e fazia parte do grupo de jesuítas que visitou o local logo após as mortes terem ocorrido. Ele trabalhou incansavelmente para formar uma rede de jesuítas para impulsionar as investigações, e para que o Congresso dos EUA pressionasse o governo salvadorenho a julgar os assassinos. Desde 1996, é reitor emérito do Boston College e, antes, havia sido reitor da mesma universidade durante 24 anos, desde 1972, a mais longa presidência da história da instituição. É doutor em filosofia pela Universidade de Louvain, na Bélgica, e ex-presidente da Associação Nacional de Faculdades e Universidades Independentes dos EUA. Também atuou como diretor do Bank of Boston (1976-96) e como presidente interino da Association of Jesuit Colleges and Universities (1996-97). É membro da Associação Filosófica Jesuíta e da Sociedade de Fenomenologia e Filosofia Existencial, ambas dos EUA.
Memória
No dia 16 de novembro de 1989, seis jesuítas, a funcionária da residência e sua filha adolescente foram mortos por soldados do batalhão paramilitar Atlacatl, que deixaram as paredes pintadas para atribuir os crimes à Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN). O crime gerou uma grande onda de revolta, especialmente nos EUA, após a descoberta de que alguns dos soldados envolvidos haviam sido treinados pela Escola das Américas, um centro de treinamento militar para tropas latino-americanas em Fort Benning, Georgia.
O julgamento dos assassinos, ocorrido em 1990, condenou apenas dois dos 14 militares culpados. Segundo o jornal El País, o restante continua em liberdade, e são hoje empresários ou aposentados que desfrutam aposentadorias e cargos nos gabinetes governamentais. O jornal espanhol indica ainda que, entre 1980 e 1992, a repressão militar assassinou 75 mil pessoas em El Salvador, deixando sete mil desaparecidos e centenas de milhares de órfãos, viúvas ou desabrigados.
"Os mártires da UCA estavam comprometidos com a libertação e com uma universidade orientada para a mudança social. A docência, a pesquisa e a projeção social da universidade deveriam estar orientadas para conhecer rigorosamente e com profundidade a realidade nacional e internacional, com a finalidade de construir um saber crítico e criativo que incidisse na marcha histórica dos nossos países num sentido libertador", afirma Héctor Samour, coordenador do doutorado em filosofia ibero-americana da UCA, em entrevista ao sítio do IHU .
Para Samour, a totalidade da vida e do pensamento dos jesuítas assassinados havia adquirido uma tríplice característica de inteligência, compaixão e serviço. "Neles, a libertação não foi um mero tema externo ao seu trabalho intelectual, ao redor do qual construíam argumentos para fundamentar sua necessidade e sua bondade, mas ela se constituía em algo que tinha muito a ver com a própria vida deles como intelectuais; foi algo que assumiram como um princípio constitutivo da sua própria existência".
Libertação, nas palavras do próprio Ellacuría, um dos jesuítas assassinados e então reitor da UCA, daquilo que pode ser considerado "como opressão injusta da plenitude e da dignidade humana, libertação de toda forma de injustiça, libertação da fome, da doença, da ignorância, do desamparo, libertação das necessidades falsas, impostas por uma sociedade de consumo".
Por isso, eles optaram por viver em um mundo de oprimidos e se localizaram conscientemente no lugar da realidade histórica onde havia opressão, no lugar das vítimas despojadas de toda figura humana. "E foi aí onde entregaram sua vida que lhes foi violentamente arrebatada", afirma o filósofo.
Homenagens
Com a exibição do debate, o IHU soma-se a uma ampla agenda de homenagens aos mártires salvadorenhos em todo o mundo. Na própria UCA, em El Salvador, um grande calendário de atividades está sendo realizado neste mês de novembro. São 16 dias de programação especialmente dedicada aos mártires.
Os eventos começaram ainda no dia 03 de novembro, com uma homenagem a Ignacio Martín-Baró,  pela passagem do seu 68º aniversário de vida. O jesuíta também será lembrado no dia 12 de novembro, no "Fórum Internacional Ignacio Martín-Baró: Psicologia da libertação, 20 anos depois".
Já no dia 10 de novembro, ocorre o "XXIV Fórum da Realidade Sócio-Política 'Segundo Montes': Pensar as migrações hoje, uma homenagem a Segundo Montes e seu legado".
As questões judiciais envolvendo o caso dos jesuítas também serão lembradas no sábado, 14 de novembro, com a conferência de Almudena Bernabeu, a advogada que apresentou o caso na Espanha. No mesmo dia, ocorre uma vigília com procissão de velas pela cidade.
No domingo, dia 15, será celebrada uma grande missa na catedral de San Salvador em comemoração aos mártires, diante do túmulo de Dom Óscar Arnulfo Romero, arcebispo da capital assassinado em 1980. No dia 16, será celebrada outra missa com a comunidade acadêmica, no campus da UCA.
No dia 18, a conferência "O papel dos mártires da UCA na transição democrática salvadorenha e as debilidades das democracias centro-americanas" irá reunir Gilles Bataillon, diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, da França, e Danilo Miranda Baires, professor do Instituto Centro-Americano de Ciências da Saúde, da UCA.
E, no dia 28, encerrando a programação, o jesuíta e companheiro dos mártires Jon Sobrino irá ministrar a grande conferência "O que os mártires nos pedem hoje", na capela da UCA.
O governo salvadorenho, após muitos anos de silêncio e dissimulação, decidiu somar-se às homenagens do mundo inteiro. No dia 03 de novembro, o presidente de El Salvador, Mauricio Funes, afirmou que irá conceder o mais alto grau de honra do país aos seis jesuítas assassinados pelo exército salvadorenho em 1989. Apesar de não incluir as duas mulheres assassinadas, Funes afirmou que a entrega da Ordem Nacional José Matias Delgado será um "ato público de desagravo" pelos erros dos governos passados. A homenagem será feita, segundo a presidência, em razão dos "serviços extraordinários prestados pelos jesuítas ao país, nas áreas de educação, direitos humanos, sua contribuição ao combate à pobreza, exclusão social, iniquidade, e suas contribuições à paz e à construção da democracia" em El Salvador.
Há algumas semanas, a Câmara de Representantes dos EUA  também aprovou uma resolução para honrar a vida dos mártires da UCA. Segundo o jornal El País, a resolução, apresentada pelo deputado democrata James McGovern e outros 33 parlamentares, "recorda e comemora as vidas e o trabalho" dos mártires, e reconhece que "as pessoas assassinadas dedicaram a sua vida para atender e aliviar as desigualdades sociais e econômicas de El Salvador".





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